quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

+*+Alphonsus de Guimaraens+*+


* Ouro Preto, 1870
+ Mariana, 1921

domingo, 26 de outubro de 2008

Musa impassível

Musa! Um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Job, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma angüiforme de Dante
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero

Dá-me o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa;
A rima cujo som, de uma harmonia creba,
Cante aos ouvidos d’alma, a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+

Musa impassível II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.

+*+Francisca Júlia+*+

imagem: Rodolpho Amoêdo: Retrato de senhora, 1892

* Xiririca (Eldorado) - SP, 1874
+ São Paulo, 1920

sábado, 25 de outubro de 2008

Fui eu

Silêncio de bronze
sobre as teias de aranha das pupilas.
Nada palpita no rosto tátil -
nem mesmo um poro.
Deslizo pela superfície imberbe
a gana de eriçá-la:
mas (munida apenas da aremetida suicida do touro)
Sua mudez desarma o esforço.

Urna cerrada como o sol,
fui, foste, fomos,
e tudo ficou retido na divisa
(no escudo)
na nitidez desse rosto acuado
- dessa carranca
com que hoje enfrento os mares.

+*+Maria Lúcia Dal Farra+*+