terça-feira, 26 de maio de 2009

Fílis e Amor
Cançoneta anacreôntica

Num denso bosque
Pouco trilhado
E a ternos crimes
Acomodado,

Por entre a rama
Fresca e sombria
Do tenro arbusto
Que me encobria,

Vi sem aljava*
Jazer Cupido**
Junto de Fílis,
À Mãe*** fugindo.

Entre as nevadas
Mãos melindrosas
Tinha um fragrante
Festão de rosas.

A mais brilhante
Dele afastando,
Dizia a Fílis
Com riso brando:

“Mimosa Ninfa****,
Glória de Amor,
Dás-me um beijinho
Por esta flor?”

“Sou criancinha,
Não tenhas pejo*****.”
Sorriu-se Fílis
E deu-lhe o beijo;

Mas o travesso
Logo outro pede
À simples Ninfa
Que lhos concede.

Que por matar-lhe
Doces desejos,
A cada instante
Repete os beijos.

Assim brincavam
Fílis e Amor,
Eis que o Menino,
S Aljava - empre traidor,

Co’a pequenina
Boca risonha
Lhe comunica
Sua peçonha.

Descora Fílis,
E de repente
Solta um suspiro
D’alma inocente.

Mal que o gemido
Férvido soa
O mau Cupido
Com ele voa.

Ninguém, ó Ninfa
(Diz a adejar******),
Brinca comigo
Sem suspirar.”

+*+Manuel Maria Barbosa Du Bocage+*+


Vocabulário

*Aljava – estojo pendente do ombro, em que se põem as setas;
** Cupido – filho de Vênus, um menino alado que fere os corações incautos com as setas do amor.
*** Mãe – com maiúscula, porque se refere a Vênus, deusa do amor;
**** Ninfa – divindade que povoa os campos, os bosques e as águas; Fílis parece ser uma Ninfa dos bosques.
***** Pejo – vergonha, pudor.
****** Adejar – voar
Soneto V

Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.

Desço da noite, envolto em sono; e os braços
Como imãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme

Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.

+*+Vinícius de Moraes+*+
in Poesia completa e prosa

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Soneto

E quando nós saímos era a Lua,
Era o vento caído e o mar sereno
Azul e cinza-azul anoitecendo
A tarde ruiva das amendoeiras.

E respiramos, livres das ardências
Do sol, que nos levara à sombra cauta
Tangidos pelo canto das cigarras
dentro e fora de nós exasperadas.

Andamos em silêncio pela praia.
Nos corpos leves e levados ia
O sentimento do prazer cumprido.

Se mágoa me ficou na despedida
Não fez mal que ficasse, nem doesse -
Era bem doce, perto das antigas.

+*+Rubem Braga+*+
Ao espelho

Tu, que não foste belo nem perfeito,
Ora te vejo (e tu me vês) com tédio
E vã melancolia, contrafeito,
Como a um condenado sem remédio.

Evitas meu olhar inquiridor
Fugindo, aos meus dois olhos vermelhos,
Porque já te falece algum valor
Para enfrentar o tédio dos espelhos.

Ontem bebeste em demasia, certo,
Mas não foi, convenhamos, a primeira
Nem a milésima vez que hás bebido.

Volta portanto a cara, vê de perto
A cara, tua cara verdadeira,
Oh Braga envelhecido, envilecido.

+*+Rubem Braga+*+

terça-feira, 12 de maio de 2009

Canção noturna do viandante

Sobre todos os cumes
quietude
Em todas as árvores mal percebes
um alento.
Os pássaros emudecem na floresta
Esperas só um pouco, breve
Tu também descansarás.

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Wanderers Nachtlied

Über allen Gipfeln
Ist Ruh
In allen Wipfeln
Spürest du
Kaum einen Hauch
Die Vögelein schweigen im Walde
Warte nur, balde
Ruhest du auch.

+*+Johann Wolfgang von Goethe+*+

Uma miscelânea das traduções de: Maria Stella de Faria Monat da Fonseca e
Celeste Aida Galeão
imagem: Wanderer above the Sea of Fog - Caspar David Friedrich
Canção dos elfos

À meia-noite, quando os homens enfim dormem,
Então nos fulge a lua,
Então nos luz a estrela;
Vagamos, enfim, cantamos,
Jubilosos dançamos.
À meia-noite, quando os homens enfim dormem,
Pelas planícies, entre os salgueiros,
Nosso espaço buscamos,
E vagamos e cantamos
E dançamos um sonho.

+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+

Elfenlied

Um Mitternacht, wenn die Menschen erst schlafen,
Dann scheinet uns der Mond,
Dann leuchtet uns der Stern
Wir wandeln und sigen
Und tanzen erst gern.
Um Mitternacht, wenn die Menschen erst schlafen,
Auf wiesen an den Erlen
Wir suchen unsern Raum
Und wandeln und singen
Und tanzen einen Traum

+*+Johann Wolfgang von Goethe+*+

Uma tradução de: Mário Faustino
Cisnes

A vida, manso lago azul algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós constantemente
um lago azul sem ondas, sem espumas.

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
matinais, rompe um sol vermelho e quente,
nós dois vagamos indolentemente,
como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo.
Quando chegar esse momento incerto,
no lago, onde talvez a água se tisne,

que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca mais ao lado de outro cisne.

+*+Júlio Salustre+*+

* Bom Jardim – RJ, 1872
+ Rio de Janeiro, 1948
A coroa de rosas

A fim, oculto amor, de coroar-te,
de adornar tuas tranças luminosas,
uma coroa teci de brancas rosas,
e fui pelo mundo afora, a procurar-te.

Sem nunca te encontrar, crendo avistar-te
nas moças que encontrava, donairosas,
fui-as beijando e fui-lhes dando as rosas
da coroa feita com amor e arte.

Trago, de caminhar, os membros lassos,
acutilam-me os ventos e as geadas,
já não sei o que são noites serenas...

Sinto que vais chegar, ouço-te os passos
mas ai! nas minhas mãos ensangüentadas
uma cora de espinhos trago apenas!

+*+Eugênio de Castro+*+

* Coimbra, 1869
+ Coimbra, 1944
Interrogação

Contemplo a noite: a cúpula estrelada
do firmamento sobre mim palpita;
meu olhar dos astros, que não vêem nada:

- Nessa amplitude lôbrega e infinita
que inteligência ou força inominada
numa elipse traçou a vossa estrada,
estrelas de ouro, que o mistério habita?

Dizei-me se, transpondo a imensidade
alguma coisa a vós minha alma prende,
um vínculo de amor ou de verdade.

Dizei-me o fim da nossa vida agora:
para que serve a luz que em vós resplende,
e a oculta mágoa que em meu seio mora?...

+*+Júlia Cortines+*+

* Rio Bonito – RJ, 1868
+ Rio de Janeiro, 1948
Nihil

Sem aos outros mentir, vivi meus dias
desditosos por dias bons tomados,
das pessoas alegres me afastando
e rindo às outras mais do que eu sombrias.

Enganava-me assim, não me enganando;
fiz dos passados males alegrias,
do meu presente e das melancolias
sempre gozos futuros fui tirando.

Sem ser amado, fui feliz amante;
imaginei-me bom, culpado sendo;
e se chorava, ria ao mesmo instante.

E tanto tempo fui assim vivendo,
de enganar-me tornei-me tão constante,
que hoje nem creio no que estou dizendo.

+*+Guimaraens Passos+*+

* Maceio, 1867
+ Paris, 1909
Canal da Mancha, 1891

Aqui, sobre estas águas cor de azeite,
cismo em meu lar, na paz que havia.
Carlota, à noite, ia ver se eu dormia,
e vinha, de manhã, trazer-me o leite.

Aqui, não tenho um único deleite!
Talvez... baixando, em breve, a água fria,
sem beijo, sem uma ave-maria,
sem uma flor, sem o menor enfeite!

Ah, pudesse eu voltar à minha infância!
Lar adorado, em fumos, à distância,
ao pé de minha irmã, vendo-a bordas...

Minha velha aia, conta-me essa história
que principiava, tenho-a na memória:
“Era uma vez...” Ah! deixe-me chorar!

+*+Antônio Nobre+*+

* Porto, 1867
+ Carreiros – Foz do Douro, 1900
Golfo de Biscaia, 1891

O meu beliche é tal qual o bercinho
onde dormi horas que não vêm mais.
Dos seus embalos já estou cheiinho:
minha velha ama são os vendavais.

Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho,
o vapor treme! Abraço a Bíblia, aos ais...
Covarde! Que dirão (eu adivinho)
os portugueses? Que dirão teus pais?

Coragem! Considera o que hás sofrido,
o que sofres e o que ainda sofrerás,
e vê depois, se acaso é permitido

tal medo à morte, tanto apego ao mundo:
Ah! fora bem melhor, vás onde vás
Antônio, que o paquete fosse ao fundo.

+*+Antônio Nobre+*+

* Porto, 1867
+ Carreiros – Foz do Douro, 1900
Eu não espero o bem que mais desejo

Eu não espero o bem que mais desejo:
sou condenado, e disso convencido;
vossas palavras, com que sou punido,
são penas e verdades de sobejo*.

O que dizeis é mal muito sabido,
pois nem se esconde nem procura ensejo
e anda à vista naquilo que mais vejo:
em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
o meu amor desamparado e triste
toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste,
conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
põe-se a sonhar o bem que não existe.

+*+Vicente de Carvalho+*+

* Santos, 1866
+ Santos, 1924



Vocabulário

* De sobejo
- De sobra; sobejamente, sobejo.
Envelhecendo

Tomba às vezes meu ser. De tropeço a tropeço,
unidos, corpo e alma, ambos rolando vão.
É o abismo e eu não sei se cresço ou se decresço,
à proporção do mal, do bem à proporção.

Sobe às vezes meu ser. De arremesso a arremesso,
unidos, estro e pulso, ambos fogem ao chão
e eu ora encaro a luz, ora à luz estremeço
e não sei onde o mal e o bem me levarão.

Fim, qual deles é? Qual deles o começo?
Prêmio, qual deles é? Qual deles é expiação?
Por qual deles ventura ou castigo mereço?

Ante o perpétuo sim, e ante o perpétuo não,
do bem que sempre fiz, nunca busquei o preço,
do mal que nunca fiz sofro a condenação.

+*+Emílio de Menezes+*+

* Curitiba, 1866
+ Rio de Janeiro, 1918
Solar encantado

Só, dominado no alto a alpestre* serrania**,
entre alcantis***, e ao pé de um rio majestoso,
dorme quedo**** na névoa o solar misterioso,
encerrado no horror de uma lenda sombria.

Ouve-se à noite, em torno, um clamor lamentoso,
piam as aves de agouro, estruge***** a ventania,
e brilhando no chão por sobre a selva fria,
correm chamas sutis de um fulgor nebuloso.

Dentro um luxo funéreo. O silêncio por tudo...
Apenas, alta noite, uma sombra de leve
agita-se a tremer nas trevas de veludo...

Ouve-se, acaso, então, vaguíssimo suspiro,
e na sala, espalhando um clarão cor de neve,
resvala como um sopro, o vulto de um vampiro.

+*+Vítor Silva+*+

* Rio de Janeiro, 1865
+ Porto Alegre, 1922


Vocabulário

*Alpestre - Rude, rústico, montês.
**Serrania - Aglomeração de serras ou montanhas; cordilheira.
***Alcantil - Rocha escarpada, talhada a pique, despenhadeiro escarpado.
****Quedo – Quieto.
*****Estrugir - Fazer estremecer com estrondo; atroar; estrondear.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Língua portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
és, a um tempo, esplendor e sepultura:
ouro nativo, que na ganga* impura
a bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
tuba de alto clangor**, lira singela,
que tens o trom*** e o silvo da procela****,
e o arrolo***** da saudade e da ternura.

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
de virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: “Meu filho!”
e em que Camões chorou, no exílio amargo,
o gênio sem ventura e o amor sem brilho.

+*+Olavo Bilac+*+

* Rio de Janeiro, 1865
+ Rio de Janeiro, 1918


Vocabulário

*Ganga - Resíduo, em geral não aproveitável, de uma jazida filoniana, o qual pode, no entanto, em certos casos, conter substâncias economicamente úteis.
**Clangor - Som rijo e estridente como o de certos instrumentos metálicos de sopro, como, p. ex., a trompa e a trombeta.
***Trom - estrondo produzido por tiros de artilharia; som do trovão.
****Procela - Tempestade marítima.
*****Arrolo - Canto para adormecer crianças.

Quadro antigo

Tudo era em torno à mesa. As taças lapidadas
jaziam pelo chão em rígidos pedaços,
e os olhos sensuais dos cortesãos devassos
beijavam a tremer os seios das amadas.

As matronas gentis de faces descoradas
desenhavam, à luz dos candeeiros baços,
dos peitos seminus os contornados traços,
mexendo-se, febris, nas rendas perfumadas.

Adormecera a turba. Um pajem, entretanto,
ficara silencioso, acabrunhado, a um canto,
quem sabe se a pensar na mãe que ali não tinha.

E ao convencer-se, enfim, de que dormia tudo,
atravessando a sala, entristecido e mudo,
pôs um beijo febril dos lábios da rainha.

+*+Eduardo Coimbra+*+

* Porto, 1864
+ São Roque de Lameira, 1884
imagem: La Taberna - The School of David Teniers

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O poeta do Hediondo

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuroses acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
+*+Augusto dos Anjos+*+

in Eu e outros poemas
Horas Mortas

Breve momento, após comprido dia
de incômodos, de penas, de cansaço,
inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
posso a ti me entregar doce Poesia.

Desta janela aberta à luz tardia
do luar em cheio a clarear no espaço,
vejo-te vir, ouço-te o leve passo
na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica.
Mas é tão tarde! Rápido flutuas,
tornando algo à etérea imensidade,

e na mesa a que escrevo apenas fica
sobre o papel – rastro das asas tuas –
em verso, um pensamento, uma saudade.

+*+Alberto de Oliveira+*+
Evangelho e Alcorão

Num tom de voz que a piedade ungia,
falava o padre ao crente do Alcorão,
que no leito de morte se estorcia:
“Implora de Jesus a compaixão.

Deixa Mafoma*, ó filho da heresia,
e abraça a sacrossanta religião
do que morreu por nós...” E concluía:
“Se te queres salvar morre cristão”.

Ao filho de Jesus, o moribundo
ergueu o olhar esbranquiçado e fundo,
onde da morte já descia o véu.

Mas logo se escutou na ânsia extrema
e ao ver da Redenção o triste emblema,
ruge expirando: “Alá nunca morreu”.

+*+Augusto de Lima+*+



Vocabulário

*Mafoma - Do antr. ár. muhammad (Maomé), cujo significado original é ‘louvado’, aquilo (p. ex., escultura) que é objeto de louvor. Escultura grande e tosca, que representa uma figura humana
Segunda canção do beco

Teu corpo moreno
É da cor da praia.
Deve ter o gosto
Da areia da praia.

Deve ter o cheiro
Que tem ao mormaço
A areia da praia.

Teu corpo moreno
Deve ter gosto
De fruta da praia
Deve ter um travo
Deve ter a cica
Dos cajus da praia.

Não sei, não sei, mas
Uma coisa me diz
Que o teu corpo magro
nunca foi feliz.

+*+Manuel Bandeira+*+
in Poesias completas e prosas

O pintor olha o muro
Olha fixamente para o muro
Descobre pouco a pouco
Uma perna um braço um olho
A cara de uma mulher
Uma floresta um peixe uma cidade
Uma constelação um navio
Muro, nuvem de pintor.

+*+Murilo Mendes+*+
in Mundo enigma