domingo, 20 de dezembro de 2009

Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

+*+Carlos Drummond de Andrade+*+
Dedicatória

Diante dessa dor, as montanhas se inclinam
e o grande rio deixa de correr.
Mas os muros das prisões são poderosos
e, por trás deles, estão as “tocas dos condenados”
e a saudade mortal.
É para os outros que a brisa fresca sopra,
é para os outros que o pôr-do-sol se enternece –
mas nada sabemos disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso ranger das chaves
e o passo pesado dos soldados.
Levantávamo-nos como para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por esta capital selvagem,
para nos encontrarmos lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais baixo, o Nevá mais nevoento,
enquanto a esperança cantava bem ao longe...
O veredicto... e as lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do mundo inteiro
como se de seu coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a derrubassem.
E, no entanto, ela ainda anda... cambaleando... sozinha...
Onde estão, agora, as companheiras de infortúnio
desses meus dois anos de terror?
O que estarão vendo, agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando minha última saudação.

+*+Anna Akhmátova+*+

Er ist’s

Frühling lässt sein blaues Band
Wieder flattern durch die Lüfte;
Süsse, Wahlbekannte Düfte
Streifen ahnungsvoll das Land.
Veilchen träumen schon,
Wollen balde kommen
Horch, von fern ein leisen Harfenon!
Frühling, ja du bist’s!
Dich hab ich vernommen!

+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+*+

É isto

Primavera volta a abrir
sua fita azul pelo ar;
doce aroma conhecido
corre a terra a perfumar.
Já violetas sonham,
vão desabrochar.
– Ouve, ao longe um suave harpejar!
Primavera, és tu, sim!
Sinto-te chegar!

+*+Eduard Mörike+*+
Tradução de Amélia de Rezende Martins

Diante de um batalhão que voltava da campanha

Lavas de glória, aos terremotos d’alma,
Queimam os peitos de paixões estranhas:
É o povo que pesa os seus guerreiros
Na balança em que Deus pesa as montanhas...

Homens do céu, fantásticos, enormes
Que sondastes o *gólfão do heroísmo,
Inda tendes nos pés ensangüentados
Agarradas as pérolas do abismo!

Tendes na fronte um resto de fumaça
Que trazeis das batalhas, e os **ressábios
Do cartucho mordido se misturam
Com o soberbo desdém dos vossos lábios.

O pendão que os relâmpagos rasgaram,
Das mãos da guerra bravamente escapo,
De que pode servir? O rei tem frio...
Dai ao rei por esmola... este farrapo!

1870
+*+Tobias Barreto+*+

Vocabulário
*Gólfão – forma em desuso de golfo
**Ressábios – ressaibo; mau sabor, ranço.

imagem: The fall of Phaeton - Peter Paul Rubens

Versos a um coveiro

Numerar sepulturas e carneiros*,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicado silogismos,
A aritmética dos coveiros!

Um, dois, três, quatro cinco... Esoterismos
Da morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!

Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética**
Dos tábidos*** carneiros sepulcrais

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!

+*+Augusto dos Anjos+*+

Vocabulário
*Carneiro - Gaveta ou urna, nos cemitérios, onde se enterram cadáveres.
**Ascético - Relativo a ascetas ou ao ascetismo.
***Tábido – Podre, corrupto.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Saudade

Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noite quando em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.

+*+Augusto dos Anjos+*+