terça-feira, 31 de março de 2009

À Meia-noite

Serena desceu a noite sobre a terra,
encostou-se sonhadora na montanha;
seu olhar vê agora a balança de ouro
do tempo descansar calma em pratos iguais
e as fontes cantam seus receios
aos ouvidos da mãe, da noite,
sobre o dia
o dia passado de hoje.

O tão antigo acalento
a noite não percebe, está cansada;
o azul do céu repete mais doce,
o jugo igualmente distribuído das horas fugidias.
Entretanto a palavra, as fontes a conservam
e as águas cantam-na em sono
sobre o dia,
o dia passado de hoje.

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Um Mitternacht

Gelassen Sting die Nacht ans Land,
Lehnt träumend an der Berge Wand,
Ihr Auge sieht die goldne Waage nun
Der Zeit in gleichen Schalen stille ruhn;
Und kecker rauschen die Quellen hervor,
Sie singen der Mutter, der Nacht, ins Ohr
Vom Tage,
Vom heute gewessen Tage.

Das uralt alte Schlummerlied,
Sie Achtets nicht, sie ist es müd;
Ihr klingt des Himmels Bläue süsser noch,
Der flüchtgen Stunden gleicheschwungnes Joch.
Doch immer behalten die Quellen das Wort,
Es singen die Wasser im Schlafe noch fort
Vom Tage,
Vom heute gewesenen Tage.

+*+Eduard Friedrich Mörike+*+
À Noite

Perambulo pela noite quieta,
e sorrateira esgueira-se a lua,
muitas vezes de escuras nuvens
e no vale de lá pra cá,
vai acordar o rouxinol.
E tudo volta a cinza e quietude.

Maravilhoso acalento noturno:
correntes vindas de longe
tremores leves nas árvores escuras
a confundir-me as idéias.
Meu canto, aqui, é sem rumo
como um chamado de sonhos.

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Nachts

Ich wandre durch die stille Nacht,
Da schleicht der Mond so Heimlich sacht
Oft aus der dunklen Wolkenhülle,
Und hin und her im Tal
Erwacht die Nachtigall,
Dann wieder alles grau und stille.

O wunderbarer Nachtgesang:
Von fern im Land der Ströme Gang,
Leis Schauern in den dunklen Bäumen –
Wirrst die Gedanken mir,
Mein irres Singen hier
Ist wie ein Rufen nur aus Träumen.

+*+Joseph von Eichendorff+*+
No lago

E alimento fresco, sangue novo
sorvo de um mundo livre;
Como é bondosa e terna a natureza
que em teu seio me abriga!
A onda embalança-nos a barcaça
à cadência dos remos,
e montes nublados contra o céu,
vêm encontrar nossa rota.

Olhos meus porque se fecham?
os sonhos de ouro hão de voltar?
para longe, sonho, dourado que sejas
aqui também há viver e amar.

Cintilam na onda
milhares de estrelas flutuantes
neblinas etéreas bebem
distâncias acumuladas;
brisa matutina acalenta
a baía em sombras
e no lago vem mirar-se
o amadurecido fruto.

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Auf dem See

Und frische Nahrung, neues Blut
Saug ich aus frier Welt;
Wie ist Natur so hold und gut,
Die mich am Busen hält!
Die Welle wieget unsern Kahn
Im Rundertekt hinauf,
Und Berge, wolkig himmelan,
Begegnen unserm Lauf.

Aug, mein Aug, was sinkst du nieder
Goldne Träume, kommt ihr wieder?
Weg, du Traum! so gold du bist;
Hier auch Lieb und Leben ist.

Auf der Welle blinken
Tausend schwebende Sterne,
Weiche Nebel trinken
Rings die türmende ferne;
Morgenwind umflügelt
Die beschattete Bucht
Und im See bespiegelt
Sich die reifende Frucht.

+*+Johann Wolfgang von Goethe+*+
* Frankfurt am Main, 28 de agosto de 1749
+ Weimar, 22 de março 1832
Unidade

Deitando os olhos sobre a perspectiva
das coisas, surpreendo em cada qual
uma simples imagem fugitiva
da infinita harmonia universal.

Uma revelação vaga e parcial
de tudo existe em cada coisa viva:
na corrente do bem ou na do mal
tudo tem uma vida evocativa.

Nada é inútil; dos homens aos insetos
vão-se estendendo todos os aspetos
que a idéia da existência pode ter;

e o que deslumbra o olhar é perceber
em todos esses seres incompletos
a completa noção de um mesmo ser...

+*+Raul de Leoni+*+

* Petrópolis, 1895
+ Itaipava – Rio de Janeiro, 1926
Supremo enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
a sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,
folhas murchas de rojo à tua porta...
Quando eu for uma pobre coisa morta,
quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
nesse corpo vibrante de mulher
será o meu que hás de encontrar ainda...

+*+Florbela Espanca+*+

* Vila Viçosa – Alentejo, 1894
+ Matosinhos – Douro, 1930
Chopin: Prelúdio n°4

Do fundo do salão vem-me o seu pranto sobre-humano,
como do fundo irreal de um desespero hoje olvidado:
dir-se-ia que estes sons têm um tom de ouro avioletado;
há um anjo a desfolhar lírios de sombra sobre o piano.

Doce prelúdio! Que ermo e doloroso desengano
fala, através do seu vago perfume de passado?
Sobre Chopin a noite abre o amplo manto constelado:
um delírio de amor anda por tudo, insone, insano!

Em cada nota solta há como um lânguido lamento.
– Oh, a doçura de sentir que o teu olhar, perdido,
sonha, recorda e sofre, ao doce ritmo vago e lento!

E o silêncio! E a paixão que abre em adeus a mãos absortas!
E o passado que volta e traz consigo, inesquecido,
um aroma secreto e vago e doce, a flores mortas!

+*+Eduardo Guimaraens+*+

* Porto Alegre, 1892
+ Rio de Janeiro, 1928

imagem retirada do site: http://niilismo.net/galeria/
Certa vez na noite ruivamente...

Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
em sons cor de amaranto, às noites de incerteza,
que eu lembro não sei de onde – a voz de uma princesa
bailando meia nua entre clarões de espada.

Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
e bêbeda de si, arfante de beleza,
acera os seios nus, descobre o sexo... Reza
o espasmo que a estrebucha em alma copulada.

Entanto nunca a vi mesmo em visão. Somente
a sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim
não lhe desejo a carne – a carne inexistente...

É só de voz-em-cio a bailadeira astral
– e nessa voz-estátua, ah! nessa voz-total
é que eu sonho esvair-me em vícios de marfim...

+*+Mário de Sá-Carneiro+*+

* Lisboa, 1890
+ Paris, 1916
Quando olho para mim...

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
que me extravio às vezes ao sair
das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
pertencem ao meu modo de existir,
e eu nunca sei como hei de concluir
as sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? Serei

tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo antes as sensações sou um pouco ateu,
nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

+*+Fernando Pessoa+*+

* Lisboa, 1888
+ Lisboa, 1935
Fosse eu apenas

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
uma coisa existente sem viver,
noite de vida sem amanhecer
entre as sirtes do meu dourado assomo...

Fada maliciosa ou incerto gnomo
fadado houvesse de não pertencer
meu intuito gloríola com ter
a árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente
escrita nalgum livro insubsistente
de um poeta antigo, de alma em outras gamas,

mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
morrendo entre bandeiras desfraldadas
na última tarde de um império em chamas...

+*+Fernando Pessoa+*+

* Lisboa, 1888
+ Lisboa, 1935
Vesperal

Se eu te pintasse, posta na tardinha,
pintava-te num fundo cor de olaia,
na mão suspensa, nessa mão que é minha,
o lenço fino acompanhando a saia!

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
em ar de infanta que perdeu a aia,
envolta numa luz que te acarinha,
na luz que desfalece e que desmaia!

Com teu encanto os dias me adamasques,
linda menina ingênua de Velásquez
a flutuar num mar de seda e renda.

deixa cair dos lábios de medronho
a perfumada voz do nosso sonho,
mas tão baixinho que só eu entenda!

+*+Antônio Sardinha+*+

* Monforte – Alentejo, 1888
+ Elvas – Alentejo, 1925
Íntimo

Minha mãe! minha mãe! Tu, que adivinhas
esta mágoa amaríssimo que eu canto,
tu, que trazes as pálpebras de pranto
cheias, tão cheias como eu trago as minhas;

tu, que vives em lágrimas, e tinhas
a vida, outrora, tão feliz, enquanto
deste teu filho, que tu queres tanto,
todas as mágoas serenando vinhas;

tu, que do astro do bem segues o brilho,
pede ao Deus que, apesar das tuas dores,
ainda persiste a castigar teu filho,

que eu não morra a sofrer, como hoje vivo,
esta angústia de uma árvore sem flores
e esta mágoa de pássaro cativo.

+*+Humberto de Campos+*+

* Miritiba – MA, 1886
+ Rio de Janeiro, 1934
Beijos Mortos

Amemos a mulher que não ilude,
e que, ao saber que a temos enganado,
perdoa por amor e por virtude,
pelo respeito ao menos do passado.

Muitas vezes, na minha juventude,
evocando o romance de um noivado,
sinto que amei outrora quando pude,
porém mais deveria ter amado.

Choro. O remorso os nervos me sacode.
E, ao relembrar o mal que então fazia,
meu desespero inconsolado explode.

E a causa desta horrível agonia,
é ter amado. quanto amar se pode,
sem ter amado quanto amar devia.

+*+Martins Fontes+*+

* Santos, 1884
+ Santos, 1937
Poeta fui e do áspero destino

Poeta fui e do áspero destino
senti bem cedo a mão pesada e dura,
Conheci mais tristeza que ventura
e sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
que tanto engana tão pouco dura;
e inda choro o rigor da sorte escura,
se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
dos sonhos que sonhava noite e dia
e só com saudades me atormento,

entendo que não tive outra alegria
nem nunca outro qualquer contentamento,
senão ter cantado o que sofria.

+*+José Albano+*+

* Fortaleza, 1882
+ Montauban – França, 1923
Soneto

Vieste tarde, meu amor. Começa
em mim caindo a neve, devagar...
Morre o sol; o outono vem depressa,
e o inverno, finalmente, há de chegar.

E se hoje andamos juntos, na promessa
de caminharmos toda a vida a par,
daqui a pouco o teu amor tem pressa
e o meu, daqui a pouco há de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
dando um ao outro só palavras mortas
que rolam mudas sobre nossas vidas,

ouviremos, nas noites desoladas,
tu, a canção das vozes desejadas,
eu, o chorar das vozes esquecidas.

+*+Nunes Claro+*+

* Lisboa, 1878
+ Lisboa, 1949
imagem: The lovers – René Magritte

domingo, 22 de março de 2009

Canção Molhada

Gotas de som molhado
Caem lá fora,
Num ruído triste...
É o silêncio gelado
Da noite que chora
Sobre tudo o que existe.
E a minha mágoa
Naquelas gotas de água
Parece encarnar.
Vago na sombra escura...
Sou morto sem sepultura
E sou nuvem a chorar...

+*+Teixeira de Pascoaes+*+
in Terra Proibida, 1899


Depois da vida

Quando meu coração parar desfeito
Em sombra, na profunda sepultura,
E o meu ser, já fantástico e perfeito,
Vaguear entre o Infinito e a terra dura;

Quando eu sentir, enfim, todo o meu peito
A transformar-se em constelada Altura;
Eu, divino Fantasma, claro Eleito,
O Enviado da Vida à Morte escura;

Quando eu for minha lúcida esperança,
Meu próprio amor jamais anoitecido,
E minha sombra for apenas lembrança;

Quando eu for um espectro de Saudade,
Entre o luar e a névoa amanhecido,
Serei contigo, Amor, na Eternidade.

+*+Teixeira de Pascoaes+*+
in Elegias, 1912
A um homem

Tu que desceste enfim à negra vala,
Sem que ouvisses um grito o lamento,
A grande voz do mar que vos embala,
A voz dos pinheirais e a voz do vento...

Tu que não viste a luz do Firmamento
E nem soubeste, em êxtase, adorá-la;
Tu que nunca tiveste o sentimento
Do aroma triste que uma flor exala!...

Tu que não choras, vendo uma for morta
Ou um pobre que bate à tua porta,
No redentor suspiro derradeiro,

Nunca foste, meu triste semelhante,
Nem por acaso, apenas por um instante,
Durante a vida, um homem verdadeiro...

+*+Teixeira de Pascoaes+*+
in Sempre, 1898
Abismos

Por abismos sem fim, vou caminhando...
E o mais profundo abismo é o alto céu
E que vertigens sempre sinto, quando
Me inclino sobre a luz que amanheceu!

É um abismo a oração que vou rezando.
É um mar sem fundo a flor que renasceu...
Nas palavras que vou pronunciando,
Cada idéia é tão alta como o céu!

Sobre abismos, caminho dia a dia...
Das suas negras trevas se irradia
Uma outra escuridão ainda maior..

Que a mim me diz, nas horas em que cismo,
Que é um abismo junto d’outro abismo,
Meu coração ao pé do seu amor!...

+*+Teixeira de Pascoaes+*+
in Sempre, 1898

domingo, 15 de março de 2009

Perguntas de um trabalhador que lê

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia varias vezes destruída
Quem a reconstruiu tanta vezes?
Em que casas Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que
a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo
Quem os ergueu? Sobre quem

Triunfaram os Césares? A decantada Bizancio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.


O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada pagina uma vitoria.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

+*+Bertold Brecht+*+
D. Dinis

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.


+*+Fernando Pessoa+*+
Lição sobre a água

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão

+*+Antônio Gedeão+*+

terça-feira, 3 de março de 2009


Abrem duas janelas para a rua

Abrem duas janelas para a rua,
com trepadeira em arcos de taquara;
a cortina de renda, larga e clara,
alveja ao fundo da vidraça nua.

Em frente o mar, e sobre o mar a lua,
a estrelejar a onda que não pára;
aflam asas por cima e solta vara,
n’água brilhante, o mestre da falua*.

Ecos noturnos e o rumor estranho
da meninada trêfega no banho
voam da praia ao chalezinho dela;

move-se um corpo de mulher, no escuro;
gira, após, o caixilho; e o luar puro
ilumina-lhe o busto na janela!

+*+Bernardino Lopes*+*+

*Bernardino da Costa Lopes

*Boa Esperança - RJ, 1859
+Rio de janeiro, 1916

Vocabulário

*falua - Antiga embarcação com câmara à popa, impelida por 20 ou mais remos, ou à vela, e usada para recreio pelos reis portugueses do século XVIII.