Miserere Mei!...
I
Eis me relatado só, na Rua da Amargura,
Como um mendigo vil, de rota capa escura
sem ter pátria, nem lei.
Desci, mais do que Jô, ao lameiro corruto.
– Ó piedosa Mulher das tranças cor de luto,
Miserere Mei!...
II
Por teus olhos subtis, mais raros que as safiras,
as aras poluí, fiz a batina em tiras
minha estola rasguei.
agora sou Dagon, Rei das dores insondáveis.
– Ó piedosa Mulher, dos olhos admiráveis,
Miserere Mei!...
III
Por teu amor, desci às trevas lacrimosas
Por teu amor, vaguei nas ruínas leprosas.
Por ti, uivei, chorei...
nas galés, hospitais, na Insônia, na Demência.
– Ó piedosa Mulher, Senhora da Clemência,
Miserere Mei!...
IV
Como Saul, cruzei as estradas devassas .
Nos cardos, nos tojais, nas alfurjas, nas praças,
os farrapos larguei
da minha alma sangrenta, estrelada em martírios,
– Ó piedosa Mulher, dos dedos cor dos lírios,
Miserere Mei!...
V
Por teu amor, desci às pávidas geenas,
dos não ouvidos ais, das não ouvidas penas.
Por ti, eu blasfemei.
Por ti, eu me estorci, nas palhas da enxovia...
– Ó piedosa Mulher, Flor da Melancolia,
Miserere Mei!...
VI
Bradam que te ofendi. – Mas os teus olhos castos
mal conheceram como, as mãos postas, de restos,
eu poli e escavei
com meus prantos de sangue, as lapas dos retiros.
– Ó piedosa Mulher, Senhora dos Suspiros,
Miserere Mei!...
VII
Arrastei-me no pó das solidões tisnadas.
No inferno das galés, nas insônias suadas,
de nostalgia, uivei...
como o proscrito infeliz nos grandes gelos russos.
– Ó piedosa Mulher, Senhora dos Soluços,
Miserere Mei!...
VIII
O suor empastou meus pávidos cabelos.
Junto ao leito febril, torvo de pesadelos,
Pai, nem Mãe encontrei!
– Ó piedosa Mulher, mãe das lágrimas mudas,
Miserere Mei!...
IX
Agora, livre enfim dos “Ciclos da Loucura”:
já transpondo os portais da “Babilônia Escura”,
mais órfão me encontrei.
Órfão, meu Deus, de ti, dos teus ais, teus ouvidos...
– Ó piedosa Mulher, Mãe doa Abandonados,
Miserere Mei!...
+*+Gomes Leal+*+
in A mulher de Luto
* Lisboa, 6 de junho de 1848
+ Lisboa, 29 de janeiro de 1921